Se o deixassem, Salvador nunca tomaria banho. Também dificilmente sairia de casa, ou melhor, do quarto onde está praticamente tudo o que o faz feliz. E para quê preocupar-se em conviver com os colegas ou medir as palavras antes de se dirigir a alguém?
Do seu ponto de vista, conta a mãe, Cristina Ferreira, nada disto faz sentido. E o mesmo acontece com a maioria das regras impostas pelos pais e pelos professores. Por muito que lhe digam que são necessárias para viver em sociedade, é-lhe difícil entendê-las, respeitá-las e interiorizá-las.
Aos nove anos, Salvador passa, aos olhos dos desconhecidos, por mal-educado, mas na verdade é uma das muitas crianças portuguesas diagnosticadas com a Síndrome de Asperger (SA), uma perturbação do desenvolvimento do espectro do autismo.
Ainda misteriosa para os investigadores, uma vez que só começou a ser estudada em meados da década de 80, esta disfunção torna os seus portadores seres especiais. Como escreve o neuropediatra Nuno Lobo Antunes, no prefácio do livro A Síndrome de Asperger - Um Guia para Pais e Profissionais (Verbo Editora), são uma espécie de Super-Homens, vindos de um planeta distante, para serem antropólogos da própria humanidade.
«São crianças que vivem no nosso mundo muito à maneira deles», explica Piedade Líbano Monteiro, presidente da Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger (APSA), usando da sua experiência de mãe de um adolescente com a perturbação, para continuar o retrato: «São miúdos obsessivos e pouco sociáveis, até rígidos, com dificuldades de adaptação à nossa sociedade, cheia de regras e subtilezas comunicacionais. Quando não acatam a norma é porque, para eles, não faz sentido e porque o seu mundo é muito diferente do nosso.»
UM MUNDO EM QUE O QUE PARECE... NÃO É!
Mas que diferenças são estas que marcam as crianças com SA? «Para elas, o mundo é estranho e desconcertante: as pessoas não dizem aquilo que pensam, dizem aquilo que não pensam, fazem comentários triviais e sem significado, aborrecem-se e perdem a paciência, quando uma pessoa com SA lhes refere centenas de factos fascinantes sobre horários, as inúmeras variedades de cenouras ou o movimento dos planetas.
Também não entendem como é que as pessoas conseguem tolerar tantas luzes, sons, cheiros, texturas, paladares, sem se desnortearem, se preocupam tanto com a hierarquia social, têm relações emocionais tão complicadas, conseguem utilizar e interpretar tantas convenções sociais, são tão ilógicos», informa, nas páginas de A Síndrome de Asperger, a inglesa Lorna Wing, a psiquiatra que usou pela primeira vez o termo SA.
Num artigo científico, publicado em 1981, a médica analisou um grupo de crianças e adultos cujas características se assemelhavam ao perfil descrito pelo pediatra vienense Hans Asperger, em 1944, numa tese de doutoramento esquecida durante quase 30 anos.
Ou seja, o mesmo período em que esta perturbação neuro-comportamental foi confundida com excentricidade, mau feitio ou classificada como autismo ligeiro. Categorias que não dizem tudo sobre a sua gravidade.
É que não se trata somente de entrar em conflito com convenções e comportamentos dominantes. O portador de SA poderá enfrentar sérias dificuldades em adaptar-se ao mundo tal como ele é, tornando-se rejeitado e dificilmente capaz de assegurar a sua independência através da integração profissional.
Sobretudo, se possuir a síndrome num grau médio ou acentuado. «Temos na associação um caso que nos faz pensar. Um par de gémeos que, apesar de serem licenciados, terem um diploma de língua inglesa e fazerem desporto, não conseguem arranjar emprego, nem manter relações sociais normais», conta Piedade Líbano Monteiro, para questionar: «Toda a vida foram considerados uns rapazes sui generis, quando tinham era Asperger. E agora?»
DIAGNOSTICAR NEM SEMPRE É FÁCIL
O diagnóstico precoce é, portanto, fundamental.
E embora pareça fácil identificar um caso de SA, a verdade é que nem sempre é assim. Sobretudo em crianças pequenas, que ainda não entraram para escola, local onde o seu comportamento e hábitos peculiares, bem como as dificuldades de aprendizagem, se revelam com maior força.
Aliás, é na escola que ocorre, normalmente, o primeiro grande embate com a norma social e surge a primeira catalogação como criança-problema. Até porque a maioria dos professores desconhece esta perturbação.
E os médicos? «Os técnicos de saúde ainda têm, também, dificuldade em identificá-la. Talvez porque só começou a ser estudada há 20 anos, talvez porque tem um cruzamento com o autismo», diz Piedade, adiantando que à APSA chegam muitos pais desesperados: «Aparecem cansados de andar para trás e para frente com diagnósticos inconclusivos. Ouvem os médicos dizer que é autismo e depois acabam por perceber, por si mesmos, que é Asperger.»
A presidente da associação conhece bem esta angústia. Também ela esteve quase oito anos à espera do diagnóstico correcto para o filho. «Fui com o Nuno ao Hospital de Santa Maria pela primeira vez quando ele tinha apenas dois anos. Disseram-me que ele sofria de um problema geral de desenvolvimento. Sem mais pormenores. Imagine-se o que é isto para uma mãe que pressente que alguma coisa não está bem com o filho, porque o acha molengão a andar e a falar e com dificuldade em seguir os objectos e as pessoas», recorda.
Quando Nuno fez 10 anos, decidiu procurar um diagnóstico alternativo: «Foi então que no CADIn - Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil - me disseram que ele tinha SA. Uma disfunção da qual nunca tinha ouvido falar e sobre a qual não havia, há quatro anos, quase nenhuma informação disponível no nosso país.»
AJUDAR OS PAIS É AJUDAR OS FILHOS
A ideia de criar a APSA nasce exactamente aí. Dessa vontade de acabar com o sentimento de isolamento dos pais ao verem os filhos diagnosticados com esta perturbação desconhecida.
Em 2003, a associação dava os primeiros passos para ter hoje cerca de 200 associados e uma centena de simpatizantes, que ali encontram não só resposta para as suas dúvidas, como o apoio de quem conhece, a fundo, as suas angústias.
«Fazemos atendimento telefónico, organizamos workshops, temos uma reunião mensal, vamos a sessões de esclarecimento em escolas e juntas de freguesia, e acabámos de organizar, em Setembro, o primeiro congresso internacional sobre a Asperger em Portugal», diz Piedade, para sublinhar: «Gostávamos de ir mais longe, mas não temos instalações próprias, algo que esperamos conseguir brevemente graças ao apoio da Câmara de Oeiras ou de Cascais.»
Cristina Ferreira salienta a importância do apoio encontrado na APSA, porque, confessa, nem sempre é fácil manter o equilíbrio familiar quando existe uma criança com SA. «As dificuldades com o Salvador não passam pela escola, pois ele é bom aluno, especialmente a Matemática. É mais a nível social. Apesar de ter nove anos, tem corpo de 12 ou 13, portanto há comportamentos que as pessoas que não conhecem o seu problema já não aceitam», conta.
«Quando vejo olhares de reprovação, apetece-me gritar: a culpa não é nossa!» Agora, que vê o filho em crescimento acelerado, Cristina sabe que vai ter outro desafio: o despertar da sexualidade. «A sua Asperger, apesar de leve, nota-se mais agora, talvez porque tenha de lidar com sensações que não conhece. Estamos mais alerta», diz.
ESPERANÇA É ESSENCIAL
Esta troca de experiências entre pais é fundamental, pois não há medicamentos para a SA. O tratamento, como explica o psicólogo Tony Attwood, no livro A Síndrome de Asperger, passa por outros canais: «Estas pessoas necessitam de ter acesso a uma gama multidisciplinar de profissionais e a uma variedade de serviços, desde terapeutas da fala a serviços de emprego especializados.»
E o neuropediatra Nuno Lobo Antunes sublinha no prefácio: «O prognóstico, tal como a abordagem terapêutica, deverá variar de acordo com a constelação de sintomas que os portadores apresentam. É também difícil prever a evolução de uma criança com esta perturbação.»
É a pensar naqueles que, como Nuno, sofrem do grau mais grave de SA e dificilmente serão capazes de ser independentes, que a APSA está a lançar a semente para um projecto de fôlego.
«Queremos criar condições para que os futuros homens e mulheres com Asperger tenham onde ficar quando nós, os pais, morrermos. Onde possam ficar em residência permanente, fazer o seu encaminhamento e formação profissional, ter actividades lúdicas, onde, no fundo, possam ter um espaço seu e alguém ao lado para colmatar as suas incapacidades», explica Piedade Líbano Monteiro, para revelar que existe já a promessa da Câmara de Almeirim para a cedência do terreno: «Não vamos limitar-nos a ter as paredes erguidas, pois só isso não chega. É fundamental começar a formar pessoal técnico especializado.»
A esperança é, para a presidente da APSA e mãe de Nuno, a cola dos seus dias. «O meu filho chegou à escola com um cartaz a dizer 'Não escolarizável' e, no entanto, saiu de lá a saber ler e escrever. Agora, vai para o 5º ano e temos mais uma vitória», conta, para destacar: «Uma pessoa que nasce Asperger morre Asperger. Isto é uma disfunção que permanece ao longo da vida. É preciso explicar aos pais que têm de aceitar isto de coração aberto.»
Cristina Ferreira não podia estar mais de acordo. Com Salvador no 4º ano e prestes a saber que sofre de SA - para aprender a lidar melhor com o problema -, mantém o espírito positivo: «A Asperger não deve ser encarada como uma fatalidade, pois vê-la assim é, de facto, a maneira mais rápida de torná-la nisso mesmo. Estes miúdos absorvem o nosso estado espírito, portanto, para bem deles, há que afastar as nuvens negras.»
OS SINAIS
Investigada apenas desde a década de 80, a Síndrome de Asperger (SA) não tem critérios de avaliação consensuais, ou seja, o diagnóstico é feito com base em sinais comportamentais cuja interpretação poderá variar. No entanto, em todos eles existem pontos comuns.
Aqui ficam algumas pistas para os pais, professores e outros profissionais.
- Competências sociais - Apesar de gostarem do contacto com os outros, os portadores de SA têm dificuldade em estabelecer diálogo ou tendem a fazer comentários inoportunos, sobretudo ofensivos ou «demasiado honestos». Mostram ainda dificuldade em perceber sinais não verbais, como expressões faciais que exprimem sentimentos. Daí isolarem-se e raramente fazerem amigos.
- Comunicação - Pode haver um atraso na linguagem até aos 4, 5 anos. Depois, podem até falar com fluência e de forma pomposa, mas parecem ausentes do diálogo ao não ligarem, e até não responderem, ao interlocutor. O seu olhar foge ao contacto visual e mostram dificuldade em entender metáforas e entoações. Traduzem tudo à letra. Expressões como «andar na lua» ou «aqui há gato» para eles não fazem sentido.
- Capacidades cognitivas - Os portadores de SA demonstram dificuldades no pensamento abstracto, mas podem ser excelentes na memorização de factos e números. Ou seja, podem ser bons alunos a Matemática ou Geografia e péssimos a Português ou Filosofia. Gostam de tudo o que seja científico e técnico, mas não toleram histórias de aventura, manifestando falta de imaginação.
- Interesses específicos - Têm habitualmente interesses obsessivos sobre determinados assuntos e gostam de o mostrar, falando sem parar sobre carros, comboios, planetas, animais ou plantéis de equipas de futebol.
- Gosto pelas rotinas - Os portadores de SA não toleram mudanças ao seu dia-a-dia. Gostam de impor rotinas, nem que seja ir para a escola sempre pelo mesmo caminho ou alinhar todos os brinquedos antes de dormir. Uma alteração no quotidiano deixa-os ansiosos.
- Competências motoras - Podem mostrar má coordenação motora, como incapacidade para jogar à bola, dificuldade em apertar os atacadores ou uma forma desajeitada de correr. Também podem desenvolver alguns tiques.
AS DÚVIDAS MAIS FREQUENTES
No livro A Síndrome de Asperger, o psicólogo Tony Attwood responde às dúvidas mais frequentes colocadas pelos pais. Aqui ficam as cinco perguntas principais.
1- QUAIS AS CAUSAS DO ASPERGER?
Mesmo que amigos ou estranhos pensem que a culpa é sua, esta perturbação não resulta de má educação, abusos ou negligência. Há três causas possíveis: factores genéticos, acontecimentos obstétricos desfavoráveis e infecções durante a gravidez, ou período de lactação, que podem afectar o cérebro. Por investigar está a possibilidade de infecções virais ou bacterianas, verificadas antes ou logo após o parto, causarem a Síndrome de Asperger (SA).
2- TEM CURA?
Não. Sendo a SA uma perturbação que afecta a forma como o cérebro processa a informação, é impossível curá-la. Contudo, uma educação específica, adequada às necessidades destas crianças, e também alguma terapia de apoio ao seu desenvolvimento, podem tornar a vida mais harmoniosa.
3- PODE SER HEREDITÁRIA?
Sim. Foi Hans Asperger que detectou, pela primeira vez, indicadores de semelhança nos pais - particularmente no pai - das crianças com SA. Investigação posterior confirmou que, em algumas famílias, existem características semelhantes nos familiares de primeiro e segundo grau de qualquer um dos lados da família. Existem ainda famílias com várias crianças ou gerações portadoras desta síndrome.
4- HÁ DIFERENÇA ENTRE RAPAZES E RAPARIGAS?
Por cada quatro rapazes diagnosticados com SA, há apenas uma rapariga identificada. Isto não quer dizer que elas não sejam portadoras, apenas que sofrem em silêncio. É que as raparigas têm mais hipóteses de serem consideradas imaturas do que invulgares e os seus interesses especiais poderão não ser tão evidentes. Também têm menos tendência a ser perturbadoras nas aulas, refugiando-se naquilo que pais e professores chamam o mundo imaginário. Além disso, são hábeis nas brincadeiras e capazes de imitar comportamentos sociais. Disfarçam a SA, portanto.
5- E O FUTURO DO MEU FILHO?
Cada caso é um caso, sendo impossível fazer generalizações. Porém, havendo diferentes graus de SA, é natural que haja diferentes expectativas para cada criança afectada. Uma coisa é certa: a última década trouxe grandes avanços no diagnóstico e intervenção, o que significa que a possibilidade de desenvolvimento é maior. E, como salienta Tony Attwood, há que saber valorizar os pontos fortes do indivíduo, podendo estar aí a semente de uma possível carreira. «Muitos dos grandes avanços da Medicina e da Arte foram conseguidos por pessoas com SA», sublinha o autor. Aliás, hoje sabe-se que Einstein e Newton eram portadores de SA.
ONDE PROCURAR AJUDA
Se desconfia que o seu filho tenha Síndrome de Asperger, a primeira coisa a fazer é procurar assistência especializada. Pode fazê-lo junto de especialistas de desenvolvimento ou neuropediatras.