Adolescente do 'Estranho Caso do Cachorro Morto' faz sucesso em mais de 15 idiomas
Há um mimo literário nas livrarias: O Estranho Caso do Cachorro Morto, primeiro romance para adultos escrito pelo inglês Mark Haddon.
Traduzido agora pela Record, conquistou o prêmio Whitbread de 2003, mas confesso que só depois de vê-lo recomendado por Ann Tyler, A.S. Byatt e Ian McEwan resolvi incluí-lo em minhas leituras, no início deste ano.
Delicioso, brilhante, contagiante, engraçado - faço meus os adjetivos que saíram do computador de Oliver Sacks, outro entusiasta de The Curious Incident of the Dog in the Nigh-Time. Pena que a capa que aqui lhe deram não tenha a mesma expressividade gráfica da americana (Doubleday), mas o fundamental, a tradução, assinada por Luiz Antonio Aguiar e Marisa Reis Sobral, é de primeira.
Delicioso, brilhante, contagiante, engraçado - faço meus os adjetivos que saíram do computador de Oliver Sacks, outro entusiasta de The Curious Incident of the Dog in the Nigh-Time. Pena que a capa que aqui lhe deram não tenha a mesma expressividade gráfica da americana (Doubleday), mas o fundamental, a tradução, assinada por Luiz Antonio Aguiar e Marisa Reis Sobral, é de primeira.
Como tantas outras obras ficcionais, O Estranho Caso do Cachorro Morto - sucesso de vendas em mais de 15 idiomas - não partiu de uma situação, uma idéia, um tema ou mesmo uma palavra, mas de uma imagem: um cachorro morto com um forcado de jardineiro. A partir dessa imagem, surgida ao acaso em sua cabeça, Mark Haddon montou uma história enganosamente policial, protagonizada e narrada por um adolescente de 15 anos chamado Christopher Boone.
Detalhe: Christopher sofre da síndrome de Asperger, uma variedade de autismo descoberta há 60 anos pelo médico vienense Hans Asperger, mas só há dez reconhecida oficialmente pela psiquiatria.
Outro detalhe: em nenhum trecho Haddon usa as palavras autista e síndrome de Asperger para explicar o comportamento de Christopher e sua percepção literal das coisas e dos seres humanos. Nas duas editoras que lançaram o romance na Inglaterra (uma para o público adulto e outra para o público adolescente) houve gente que só se deu conta da deficiência do personagem quando, à revelia do autor, os responsáveis pela edição a destacaram na contracapa, para efeito de marketing.
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William Faulkner também partiu de uma imagem (uma menina com os fundilhos sujos de lama, encarapitada numa árvore) para criar O Som e a Fúria (recém-traduzido pela Cosac & Naify), cujo primeiro capítulo é todo narrado do ponto de vista de um retardado, Benjy Compson. Se o capítulo inicial de O Som e a Fúria exige do leitor atenção e paciência redobradas, O Estranho Caso do Cachorro Morto é leitura fluente e prazerosa da primeira à última linha.
"Passavam sete minutos da meia-noite. O cachorro estava deitado na grama, no meio do jardim da frente da senhora Shears. Os olhos dele estavam fechados.
Parecia que ele estava correndo de lado, do jeito que os cachorros correm, quando acham que estão atrás de um gato, num sonho. Mas o cachorro não estava correndo nem estava dormindo. O cachorro estava morto. Havia um forcado de jardinagem atravessando o cachorro. As pontas do forcado deviam ter varado o corpo do cachorro e se cravado na terra, porque o forcado não tinha caído.
Concluí que o cachorro devia ter sido morto com o forcado porque não consegui ver outros ferimentos no cachorro e não acho que alguém ia enfiar um forcado de jardim num cachorro se ele já estivesse morrido de alguma outra causa, como câncer, por exemplo, ou um acidente de carro."
Concluí que o cachorro devia ter sido morto com o forcado porque não consegui ver outros ferimentos no cachorro e não acho que alguém ia enfiar um forcado de jardim num cachorro se ele já estivesse morrido de alguma outra causa, como câncer, por exemplo, ou um acidente de carro."
Assim Christopher Boone começa a contar sua história.
Raymond Babbitt, o personagem autista de Dustin Hoffman em Rain Man, talvez não conseguisse reproduzir por escrito sua viagem com o irmão até a costa oeste dos EUA, mas nem todos os autistas são iguais. Plausível foi outro adjetivo conferido ao romance de Haddon por Oliver Sacks, que entende à beça de autismo. "Além de contar uma boa história de mistério, o livro descreve com precisão como funciona a mente de uma pessoa com a síndrome de Asperger", opinou William Schofield, numa resenha encomendada pelo Guardian de Londres. Schofield, que na época tinha 18 anos, também conhece a fundo o assunto. Schofield é autista.
O artifício encontrado por Haddon para tornar plausível a capacidade narrativa de Christopher foi fazer dele um admirador das histórias de Sherlock Holmes, em especial de O Cão dos Baskervilles, e um imitador de sir Conan Doyle. Só muito superficialmente, contudo, O Estranho Caso do Cachorro Morto é um romance policial. Primeiro e único suspeito da morte de Wellington (assim se chamava o poodle da senhora Shears), Christopher toma a si a missão de descobrir o verdadeiro culpado, entregando-se a uma investigação pretensamente sherlockiana ao longo da qual "soluciona", sem querer, outro enigma: "morte" de sua mãe.
Christopher vive em Swindon, a meio caminho de Oxford e Bristol, com o pai, que dirige uma firma de manutenção de aquecedores e de calefação, e Toby, seu rato de estimação. Sua mãe morreu faz algum tempo; ao menos foi isso que seu pai lhe contou. Sua capacidade para cálculos matemáticos e quebra-cabeças é tão prodigiosa quanto sua memória.
Sabe de cor as capitais de todos os países do mundo e todos os números primos até 7.507, daí ter numerado os capítulos de seu romance não com os números cardiais de praxe, mas com os algarismos 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29, 31, 37...até 233.
Sabe de cor as capitais de todos os países do mundo e todos os números primos até 7.507, daí ter numerado os capítulos de seu romance não com os números cardiais de praxe, mas com os algarismos 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29, 31, 37...até 233.
A matemática é também o seu Valium, o seu Prozac.
Incapaz de mentir e alérgico a estranhos, transições, mudanças, tem idéias fixas, segue rotinas obsessivas e não entende as nuanças das emoções humanas. Natural, pois, que perceba o mundo de maneira peculiar e comporte-se, aos olhos dos "normais" que o cercam, de forma excêntrica, rude e mal-educada. Por ter uma visão literal das coisas, qualquer metáfora ("morrer de rir", "menina-dos-olhos", "dia de cão" e "bater as botas") lhe soa absurda, incompreensível. Christopher não interpreta o que vê e ouve, limitando-se a dar pistas descritivas e deixar as reações por conta do leitor. "Entenda como quiser", acrescenta.
No capítulo 73, que inevitavelmente fica entre o 71 e o 79, ele relaciona os seus problemas comportamentais: não sorri; não gosta de ser tocado; fica sem conversar com pessoas por um longo tempo; grita e dá socos quando irritado ou confuso; não gosta de ficar em lugares pequenos com outras pessoas; detesta e se recusa a tocar em coisas amarelas e marrons; só come diferentes tipos de alimento se eles não se tocarem no prato; odeia a França; fica perturbado quando alguém muda a mobília de lugar. Mais complicadas, acredite, são as pessoas que com ele convivem ou cruzam.
"No fundo, é um livro sobre livros, sobre o que podemos fazer com as palavras", disse Haddon a uma jornalista londrina fascinada com a saída encontrada por Christopher para comunicar-se com o mundo real.
Nascido em Northampton há 42 anos, Haddon quase se formou em matemática. Foi salvo, como ele próprio gosta de dizer, pela paixão pela literatura. Depois de gramar alguns meses como bilheteiro de teatro e carteiro em Londres, acumulou razoável experiência com autismo e patologias afins trabalhando em instituições para deficientes mentais. Aprumou-se profissionalmente como ilustrador e cartunista de nobres publicações inglesas como o New Statesman, a Private Eye e o Guardian, roteirista de dramas televisivos para crianças (pelos quais ganhou dois prêmios) e autor de livros infantis.
O Estranho Caso do Cachorro Morto foi o seu cross-over, o seu passaporte para a literatura adulta. Seu êxito pode ser medido não apenas pelas vendas e pelos elogios que por todo canto vem colhendo mas também pelos US$ 500 mil que Haddon recebeu da Warner e do ator Brad Pitt para viabilizar a transposição das andanças de Christopher Boone ao cinema. Steve Kloves, da série Harry Potter, já está escrevendo a adaptação.
O Estranho Caso do Cachorro Morto foi o seu cross-over, o seu passaporte para a literatura adulta. Seu êxito pode ser medido não apenas pelas vendas e pelos elogios que por todo canto vem colhendo mas também pelos US$ 500 mil que Haddon recebeu da Warner e do ator Brad Pitt para viabilizar a transposição das andanças de Christopher Boone ao cinema. Steve Kloves, da série Harry Potter, já está escrevendo a adaptação.
Alguns dos romances mais interessantes deste início de século lidam com personagens dotados de mentes "anormais", afetadas por deficiências neurobiológicas, problemas neurológicos ou descuidos iatrogênicos. Mera coincidência ou uma tendência cujo objetivo seria nos fazer entender as mentes ditas normais através do comportamento de jovens anômalos e excepcionais, como Christopher e Ludo (o gênio poliglota, matemático e musical de O Último Samurai, de Helen DeWitt, traduzido pela Rocco), e de adultos lentamente destruídos pelo mal de Parkinson (como o Alfred Lambert de As Correções, de Jonathan Franzen, traduzido pela Cia. das Letras) e por uma overdose de antidepressantes (como o Bernard Schwartz de The Sleeping Father, de Matthew Sharpe)?
É no mínimo curioso que num mundo tão fissurado em dietas, corpos sarados, botox e lipoaspiração, a preocupação maior de certos escritores seja a dissolução da mente, a morte do cérebro.
Não menos curioso é o fato de Christopher comover-se com a morte de um cachorro e tratar seu camundongo como a um filho, pouco se lixando para as tragédias humanas à sua volta. Christopher tem tudo para tornar-se um grande matemático ou um físico notável ("Eu posso fazer qualquer coisa", afirma, fechando triunfalmente o romance), mas não ficaria surpreso se ele, desviado de seu destino manifesto por alguma fatalidade ou de moto próprio, acabasse como o professor David Lurie de Desonra, o dilacerante romance de J.M.Coetzee, cuidando de dar um fim misericordioso a cães sem salvação.
Quanto mais expomos e aceitamos nossa condição de animal perecível, mais nos conscientizamos de que o convívio com os animais dito irracionais, aqueles que muitos de nós confinam, desterram ou matam, inclusive por sádico prazer e frívolos motivos, precisa ser repensado. Repensado como uma questão ecológica, moral, humanista. Quem sabe através dos irracionais não aprendemos a amar nossos semelhantes, não descobrimos a tão falada fraternidade universal? De certo modo, esta é uma das "mensagens" mais recônditas ou sibilinas de O Estranho Caso do Cachorro Morto.
Fonte da reportagem:
http://saci.org.br/index.php?modulo=akemi¶metro=10968
Fonte da imagem:
http://www.mlfonseca.net/wp-content/uploads/2011/03/Estranho-caso-do-cao-morto.jpg
http://saci.org.br/index.php?modulo=akemi¶metro=10968
Fonte da imagem:
http://www.mlfonseca.net/wp-content/uploads/2011/03/Estranho-caso-do-cao-morto.jpg